Improviso perigoso na construção de linhas de transmissão

Uma das características das empresas e dos trabalhadores que constroem linhas de transmissão é a autossuficiência! Como trabalham isoladas, elas normalmente terceirizam poucas atividades e possuem capacidade de realizar quase todas as tarefas pertinentes a construção. Tal característica de engenhar também contribui para uma enorme capacidade de improvisar soluções, contudo, percebemos por experiência própria, que a mesma faz parte de uma cultura na construção de linhas de transmissão, cultura esta que o faz parecer normal o que é comum, daí nasce o perigo.

Um dos improvisos que tem a marca do trabalho em linhas de transmissão é uma situação até corriqueira nas fases de montagem, revisão, lançamento de cabos, encabeçamento e comissionamento, a situação em questão é o prolongamento do talabarte de segurança com o uso de um pedaço de corda, tal “técnica” é conhecida como “rabo de macaco”.  Como é comum este tipo de não conformidade, percebemos que os supervisores e até os profissionais de segurança a acham normal e não dão o devido tratamento ao risco que os trabalhadores se colocam. Devemos entender que é dever das lideranças e obrigação legal dos profissionais de segurança do trabalho impedir o uso desta prática, afim de garantir a integridade física daqueles que estão sob sua responsabilidade.

Imagem 01 – Exemplo de “rabo de macaco” (foto: João Marcelo Saraiva).

 

Tabela 01: Itens em destaque na imagem 01.
Detalhe Descrição
1 Círculo Vermelho. Ponto de ancoragem do talabarte na torre.
2 Círculo Azul.

Ponto de conexão do talabarte com a corda (extensor improvisado).

3 Círculo Amarelo.

Detalhe do tamanho da corda (extensor improvisado) que liga o trabalhador ao talabarte.

 

Vamos entender o porquê… a pratica do “rabo de macaco” nasce da comodidade do trabalhador, em poder se deslocar por um perímetro maior, sem a necessidade de ficar movendo a ancoragem conforme vai progredindo na estrutura. Outro fator que gera a utilização desta prática perigosa, é a falha na seleção do EPI para a atividade, no mercado há modelo que possuem até 2 metros de extensão, estes modelos são mais adequados quando existe a necessidade de progredir em uma estrutura sem a troca constante do ponto de ancoragem.

A legislação e as normas técnicas são as diretrizes da segurança do trabalho, em 2012, a NR 35 foi publicada visando normatizar e dar combate as causas no maior gerador de acidentes com trabalhadores no Brasil, o trabalho em altura. Anualmente, estatisticamente de 30 a 40% dos acidentes de trabalho no Brasil tem as quedas como fator gerador. Para continuarmos a falar sobre o desvio registrado vamos ver os que a legislação e as normas técnicas tem a dizer sobre o assunto:

NR 35 – Trabalho em Altura

35.1. Objetivo e Campo de Aplicação

35.1.1 Esta Norma estabelece os requisitos mínimos e as medidas de proteção para o trabalho em altura, envolvendo o planejamento, a organização e a execução, de forma a garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente com esta atividade.

35.1.2 Considera-se trabalho em altura toda atividade executada acima de 2,00 m (dois metros) do nível inferior, onde haja risco de queda.

35.1.3 Esta norma se complementa com as normas técnicas oficiais estabelecidas pelos Órgãos competentes e, na ausência ou omissão dessas, com as normas internacionais aplicáveis.

Já no inicio da norma, fica claro seu objetivo e aplicação, ainda não resta dúvida no reconhecimento de uma atividade em altura e a necessidade de se observar as normas técnicas nacionais ou internacionais quando necessário. Ainda na NR 35 fica estabelecido a necessidade do sistema de proteção contra quedas:

35.5 Sistemas de Proteção contra quedas (NR)

35.5.1 É obrigatória a utilização de sistema de proteção contra quedas sempre que não for possível evitar o trabalho em altura. (NR)

A NR 35 ainda expõe as condicionantes aos sistemas contra quedas:

35.5.2 O sistema de proteção contra quedas deve: (NR)

a) ser adequado à tarefa a ser executada; (NR)

b) ser selecionado de acordo com Análise de Risco, considerando, além dos riscos a que o trabalhador está exposto, os riscos adicionais; (NR)

c) ser selecionado por profissional qualificado em segurança do trabalho; (NR)

d) ter resistência para suportar a força máxima aplicável prevista quando de uma queda; (NR)

e) atender às normas técnicas nacionais ou na sua inexistência às normas internacionais aplicáveis; (NR)

f) ter todos os seus elementos compatíveis e submetidos a uma sistemática de inspeção. (NR)

Faz parte do SPCQ o SPIQ (sistema de proteção individual conta quedas), o mesmo a NR 35 descreve seus componentes como sendo:

35.5.5 O SPIQ é constituído dos seguintes elementos: (NR)

a) sistema de ancoragem; (NR)

b) elemento de ligação; (NR)

c) equipamento de proteção individual. (NR)

A título de alinhamento de informação e usando como exemplo o cenário do desvio tratado neste comentário:

a) O sistema de ancoragem é a torre, chamamos a utilização da própria estrutura como ancoragem diretamente na estrutura (Fonte: Anexo II da NR 35);

b) O elemento de ligação é o talabarte, equipamento que que atua em conjunto com o cinto tipo paraquedista e irá reter a queda do trabalhador no caso de uma queda;

C) Equipamento de proteção individual é o cinto tipo paraquedista, equipamento com CA (certificado de aprovação) do órgão competente e trabalha em conjunto com o elemento de ligação para reter a queda de um trabalhador no caso de uma queda.

Além das informações citadas acima a NR 35 ainda cita mais condicionantes aos elementos de ligação, neste caso estamos tratando do talabarte:

35.5.11 A Análise de Risco prevista nesta norma deve considerar para o SPIQ minimamente os seguintes aspectos: (NR)

a) que o trabalhador deve permanecer conectado ao sistema durante todo o período de exposição ao risco de queda; (NR)

b) distância de queda livre; (NR)

c) o fator de queda; (NR)

d) a utilização de um elemento de ligação que garanta um impacto de no máximo 6 kN seja transmitido ao trabalhador quando da retenção de uma queda; (NR)

e) a zona livre de queda; (NR)

f) compatibilidade entre os elementos do SPIQ. (NR)

Assim, novamente a prática evidenciada fere as determinações acima nos itens:

B, pois altera a distancia de queda livre do talabarte, aumentando de forma não projetada pelo seu fabricante;

C, o fator de queda (razão entre a distância que o trabalhador percorreria na queda e o comprimento do equipamento que irá detê-lo), para se ter uma ideia, o talabarte em questão foi projetado para uma utilização ideal em fator de queda 1, aproximadamente uma queda de 1,50 metros, e no cenário evidenciado estava sendo utilizado em fator de queda 3, com uma queda de aproximadamente 4,5 metros, lembramos que os equipamentos de proteção são testados para garantir a segurança do usuário em fator de queda 2, acima disso nenhum equipamento é testado e este cenário é proibido pelas normas técnicas, como demonstração disto temos a imagem abaixo, extraído do manual de acesso por corda da ABENDI, certificadora brasileira desta técnica, como o acesso por corda é considerado a elite dos trabalhos em altura, as recomendações desta técnica devem nortear os trabalhos em altura convencionais;

Imagem 02 – Manual de acesso por corda (foto: João Marcelo Saraiva).

 

Imagem 03 – Exemplos de fatores de queda no manual (foto: João Marcelo Saraiva).

 

Imagem 04 – Nota de advertência no manual para situações com fator de queda maior que 2 (foto: João Marcelo Saraiva).

 

Além do manual, temos como exemplo desta condição perigosa, os próprios manuais dos fabricantes, nas imagens abaixo temos dois exemplos, ressaltando o perigo de executar atividades em fator de queda 2:

Imagem 05 – Nota de advertência no manual dos cintos da TASK (imagem de internet).

 

Imagem 06 – Nota de advertência no manual dos cintos da HERCULES (imagem de internet).

 

D, o talabarte quanto projetado recebe conforme o seu tamanho e o peso projetado do usuário, um absorvedor de energia que visa dissipar a energia gerada numa queda, assim, quando os equipamentos são testados a energia final transferida para o usuário e medida e o equipamento recebe ou não a conformidade dentro das normas de construção neste caso as NBR ABNT 15.834 e 14.629. O ponto mais importante dos testes é verificar se o equipamento não irá transferir energia (em forma de força de impacto) para o usuário acima de 6kN, visto que após este valor as consequências podem ser graves ou até fatais ao ser humano. Uma grandeza que determina o valor da energia gerada é o tamanho da queda! Lembramos que o talabarte em questão foi testado com uma extensão de 1,5 metros e não de 4,5 metros que ele possui agora após a adição da corda pelo trabalhador;

E, a zona de queda livre do equipamento foi alterada pelo trabalhador e não condiz mais com a projetada pelo fabricante, as informações contidas no manual não mais protegem os usuários;

F, a corda acrescida no elemento de ligação não foi projetada pelo fabricante e, portanto, fere a exigência legal de compatibilidade.

Ainda na NR 35 e citando os elementos de ligação temos os seguintes requisitos:

35.5.11.1 O talabarte e o dispositivo trava-quedas devem ser posicionados: (NR)

a) quando aplicável, acima da altura do elemento de engate para retenção de quedas do equipamento de proteção individual; (NR)

b) de modo a restringir a distância de queda livre; (NR)

c) de forma a assegurar que, em caso de ocorrência de queda, o trabalhador não colida com estrutura inferior. (NR)

Imagem 05 – Detalhe da condição de perigo (foto João Marcelo Saraiva).

 

Novamente o cenário encontrado não atende as orientações da legislação NR 35, e citamos a NR 35 novamente no seu texto abaixo:

35.5.11.1.1 O talabarte, exceto quando especificado pelo fabricante e considerando suas limitações de uso, não pode ser utilizado: (NR)

a) conectado a outro talabarte, elemento de ligação ou extensor; (NR)

b) com nós ou laços. (NR).

Fica claro que de acordo com as evidências, o texto acima também retrata o descumprimento da legislação.

Outras normas que ferimos ao executar e permitir esta “técnica”:

1) NBR 15.834 – Equipamento de proteção individual contra quedas – Talabarte de segurança

Normatiza e dá diretrizes para a projeto, fabricação e ensaio destes equipamentos.

Imagem 06 – Informação na norma sobre tamanho máximo de um talabarte (imagem da internet).

 

Imagem 07 – Informação na norma sobre tamanho de talabarte (imagem da internet).

 

Assim, quando alongamos o tamanho do talabarte com uma corda, desrespeitamos a engenharia do produto e os materiais escolhidos para a construção do mesmo, colocando o equipamento em cargas não mensuradas ao mesmo.

2) NBR 14.629 – Equipamento de proteção individual contra quedas – Absorvedor de energia

Imagem 08 – Informação na norma sobre tamanho de talabarte com o absorvedor de energia (imagem da internet).

Assim, quando alongamos o tamanho do talabarte com uma corda, desrespeitamos a engenharia do produto e os testes realizados com o absorvedor de energia, que garantiam que a força de impacto que seria transferida ao trabalhador não excederia os 6 kN permitidos, força de impacto essa que pode causar graves lesões e até mesmo a morte do trabalhador usuário deste sistema.

Se faz necessário ações para coibir esta prática, precisamos contar com o apoio dos encarregados, técnicos de segurança e dos trabalhadores. O investimento em equipamentos condizentes com as atividades e, portanto, escolhidos de acordo com a real necessidade dos trabalhadores e não por padronização de compras. Outro ponto importantíssimo é a capacitação de qualidade dos supervisores, técnicos e trabalhadores, não basta evidenciar treinamento, este tem que ter qualidade, ser ministrado por profissionais que realmente conheçam de construção de linhas de transmissão e que tenham de fato proficiência para falar sobre o assunto, e não que apresentem certificados de instrutor que hoje se conseguem hoje em dia, até em cursos on line. Resumindo tem que se ter responsabilidade com a segurança dos trabalhadores.

 

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e-artigo 03-2019 – Improviso perigoso na construção de linhas de transmissão

 

Sobre o autor: JOÃO MARCELO RIBEIRO SARAIVA é Profissional em Acesso por cordas (alpinismo Industrial) com Certificação ABENDI, Especialista em resgate vertical avançado, Especialista internacional em sistemas de ancoragens, Supervisor de trabalho em altura N2 pelo sistema Task College, Técnico em Segurança do Trabalho com experiência em projetos onshore e offshore, Bombeiro industrial civil, Instrutor de treinamentos de NR 35 e NR 33, Instrutor de Resgate vertical e Montanhista esportivo a mais de 20 anos. É desenvolvedor do sistema Horus de gerenciamento de NR 35, Consultor técnico da Horus Soluções Verticais, criador do nó Borboleta Sergipana com 3 e 4 alças e de outros sistemas para atividades verticais.

 

 

 

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